quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Nos próximos dez anos não podemos investir em betão

Esta é a solução para o país, apelidada de "simples" por Fernando Ulrich, presidente do BPI, esta manhã numa conferência. João Salgueiro foi outro dos intervenientes que focou que o país só vai sair da armadilha da dívida, quando crescer o suficiente para pagar os juros

  

A receita para endireitar as contas do país é "simples", garantiu hoje Fernando Ulrich no IX Seminário de Reflexão Estratégica organizado pela Centromarca, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa.
Radical, o presidente do Banco BPI revelou a solução: "Os dez milhões de portugueses têm que perceber que nos próximos dez anos não se vai investir em autoestradas, aeroportos, TVG (comboio de alta velocidade), nem na construção de escolas ou universidades".

"É simples", enfatizou com ironia Ulrich. O patrão do BPI fica boquiaberto com o facto de, mesmo apesar da crise, "ainda existirem pessoas que não mudaram de visão". "É impressionante a quantidade de pessoas que ainda pensam em betão!".

"O pouco dinheiro que houver será para o essencial, para delinear estratégias que tornem o país mais competitivo", avisa. Uma mensagem que Ulrich 'desafia' o Presidente da República, primeiro-ministro e restantes governantes.

O tema em cima da mesa foi ambicioso, "Reflexão sobre a organização empresarial, a sua responsabilidade na sociedade portuguesa, perspetivas para o futuro e novos caminhos", e o painel, além de Ulrich, incluiu D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, Carlos Costa, governador do Banco de Portugal e advogado Pedro Rebelo de Sousa, enquanto presidente do Instituto Português de Corporate Governance.

Subsídio de desemprego paga trabalho em empresas 

Voltando à participação do presidente do BPI e ao seu discurso, regra geral provocatório, Ulrich deixou no ar uma sugestão para amenizar a subida do desemprego e, ao mesmo tempo, ser uma boa ação de responsabilidade social por parte das empresas. "Quem está empregado está integrado socialmente, quem perdeu o emprego acaba por ficar excluído pois não evolui, refletiu.

Uma solução, que ajudaria à coesão social, seria "acomodar parte do subsídio de desemprego para uma série de pessoas desempregadas irem trabalhar para as empresas que estivessem dispostas a recebê-las", sugeriu, acrescentando que "neste momento o BPI não precisa de recursos humanos, mas estaria disposto a aderir a uma iniciativa deste tipo, desde que a lei não me obrigasse a ficar com esses quadros". 

Nesse período, frisou o gestor, as pessoas não estariam estagnadas, ganhavam competências e a empresa beneficiaria também com a experiências desses novas colaboradores.
"Se esta partilha de custos (Estado e sector privado) for um imperativo nacional, o BPI até podia incorporar 500 trabalhadores, assim como estou convencido que grandes empresas como a PT ou EDP teriam capacidade para isso. Mas as pequenas também, integrando um ou dois trabalhadores em situação de desemprego".

Ou, então, "diminuem-se os salários a todos para as empresas integrarem mais pessoas", atirou.
Esta questão levou às mudanças que se esperam para o mercado de trabalho. Um novo modelo de desenvolvimento económico passa por adaptar a realidade "ao facto da idade da reforma vir a aumentar, por exemplo, e isso obriga-nos a encontrar soluções como horários reduzidos", interveio Pedro Rebelo de Sousa. O advogado não resistiu a introduzir também alguma polémica no debate: "Como é que se pode pagar 14 salários a quem trabalha dez meses?".

A economia tem que crescer para pagar a dívida

João Salgueiro, ex-presidente da Associação Portuguesa de Bancos, e uma das vozes mais incómodas no que toca a apontar os grandes erros de política económica de finanças públicas cometidos nos últimos anos, participou na sessão de abertura do debate.

Para o economista não há voltar a dar: "Para se sair desta armadilha do custo da dívida externa é necessário que a economia cresça mais do que os juros que nos são cobrados". Não será fácil, reconhece Salgueiro, mas é possível com "políticas de longo prazo que invertam o défice de poupança nacional (os italianos financiam o próprio défice, por exemplo) e que estimulem a economia a produzir e criar riqueza". Os eixos e que o tecido empresarial tem que se focar são: exportação, quadros válidos e terem produtos inovadores.

"Os tiros na banca e no off-shore da Madeira são tiros errados porque não é assim que se cria confiança para a poupança em Portugal".

Os outros pilares devem ser uma "educação profissionalizante e mais exigente, justiça em tempo útil e acabar com a burocracia do Estado que ainda emperra a atividade económica".

Além disso, "tem que nos ser dito de onde veio o descontrolo orçamental de 2009, em que estado está a dívida acumulada entretanto, quais são as responsabilidades do país que aí vêm com os custos das parcerias público-privadas, com a sub-dotação das empresas públicas e também com o BPN". Estas foram algumas das questões lançadas por João Salgueiro, cujas respostas é que permitirão traçar uma estratégia.

A crise das finanças públicas não se resolve "com aumento de impostos, transferências de fundos de pensões ou com a venda de imóveis não nos leva a lado nenhum. Só apagam fogos".

Muitas vezes apelidado de pessimista, João Salgueiro referiu que, "pela primeira vez os portugueses acreditam que temos um problema". "Hoje quem diz que temos que mudar já não é um pessimista, mas sim um otimista", concretizou.

E alertou que "ao falarem da possíbilidade da vinda do Fundo Monetário Internacional (FMI), governantes e ex-governantes estão a dizer que acham que esta crise é igual às outras crises". Nada podia ser mais errado, considera João Salgueiro, para quem "esta crise é de mudança de paradigma".

"Seja qual for o Orçamento do Estado não nos vai dar uma saída", referiu, porque "nos falta o trabalho de casa, nomeadamente a concretização, no devido tempo, do PRACE - Programa de Re-estruturação da Administração Central do Estado, onde já estava a lista de fusões e extinções de organismos públicos". João Salgueiro frisou que "estava tudo previsto", mas não se fez.
A culpa? "Grande parte do problema é a classe dirigente política. Em França ou na China, por exemplo, é difícil entrar para a política, enquanto por cá se recruta nas jotas...".

1º responsabilidade social da empresa é ser competitiva

A mudança, opinou Carlos Costa, passa também por alterar o modelo social vigente, "que confunde proteção do trabalhador com proteção do posto de trabalho". "Determinadas funções de coesão estão a ser transferidas para as empresas", critica o governador do Banco de Portugal. "A proteção do rendimento e do trabalho é necessário, mas não pode impedir a reorganizaçãop das empresas". Caso contrário "não será possível a necessária transformação".

A primeira responsabilidade social da empresa, referiu Carlos Costa, é "manter-se competitiva e garantir a satisfação das expetativas dos stakeholders". Para isso é necessário transparência nas contas e um dado que, neste campo, causa alarme "e me preocupa é o rácio de alavancagem das empresas. Assistimos a uma lógica de desinvestimento de quem participa no capital das empresas". Ou seja, Carlos Costa põe o dedo na ferida: "há desconfiança". "Tem que haver compromisso e consenso entre cada uma das partes interessadas na empresa. Não podem estar lá com um pé de fora. O auto-financiamento das empresas dá confiança aos trabalhadores, por exemplo".

E enfatiza "tenho toda a simpatia por ações de responsabilidade social das empresas, mas isso não é a sua função, é apenas um contributo. O que lhes compete é serem produtivas". É nesta medida que, na opinião do governador, as empresas "criam coesão, que é um fator crítico do seu sucesso".
O resumo de Carlos Costa não é animador: "temos um sector produtivo que é fraco e um Estado que assumiu responsabilidades que não pode cumprir".

Urge uma sociedade que "seja capaz de regenerar os seus valores em torno da transformação e da inclusão. É fundamental integrar as novas realidades sociais e não deixar que as empresas fiquem reféns de quadros normativos que as limitam em termos de competitividade".

As pessoas têm que saber a verdade

"Quando recebi o convite pensei se convidam um homem de Deus para um debate destes é porque isto está muito mau", a tirada pertenceu a D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa e arrancou risos à plateia.
O bispo focou a ganância e a cobiça subjacentes à crise atual e apelou a "uma racionalização dos bens, optar pela austeridade não agrada a economia, mas é o único modo de corrigir o consumismo".

A longo prazo, considera D. Carlos Azevedo, a estratégia (que se inclui nas ações de responsabilidade social) deve passar por "estar presente em países que são necessitados", mas frisa que "a deslocalização só para a exploração não é sustentável".

Também o bispo auxiliar de Lisboa avizinha tempos em que "as pessoas vão ter que encontrar modos de trabalhar menos horas e de partilhar o emprego, o que vai obrigar a uma mudança nos estilos de vida".
"É, por isso, necessário que seja bem explicado à sociedade as razões desta situação. Tem que haver honestidade e as engenharias financeiras e políticas não nos dão a conhecer a realidade", concluiu.

In: Expresso

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